Sobre o esporte, o risco e o fator humano
quarta-feira, 22 de julho de 2015 às 9:00Colaboração: Ricardo Reys
Sempre tive a certeza de uma coisa: um dos principais motivos para a grave queda de audiência da Fórmula 1 é a atual carência de riscos da modalidade. Não. Não é a banalização da vida. Mas sim, a ausência do fator humano no esporte. A hiper segurança dos autódromos atuais sobrepujou não somente a eventual presença da morte, mas também, descaracterizou o certame e, principalmente, sua emoção. Igual se fala dos carros; a corrida frenética contra os riscos transformou os bólidos atuais numa expressão apática do que já foram, o quê, aliado às necessidades do mundo corporativo atual, os tornou meras sombras silenciosas das bestas berrantes de poucos anos atrás.
Mesmo assim, a Fórmula 1 ainda é o que é; a principal categoria de um dos esportes mais perigosos do mundo. Onde seus times, mais do que as melhores equipes de corrida, são também as fábricas mais desenvolvidas de seu ofício – quiçá, da indústria comercial. O alto desenvolvimento das décadas anteriores criou obras-primas sobre rodas, e em paralelo, a segurança cresceu muito, sempre se mantendo, ou tentando se manter, acima da imediata, avassaladora e iminente dor. Afinal, a fibra de carbono, o cockpit e até as barreiras de proteção podem se reforçar com o tempo. Porém, a carne há de continuar a mesma.
Aí que entra o contrassenso; a Fórmula 1 se preocupa tanto em oferecer equipamentos e instalações altamente seguras, mas releva o risco quando se trata da hipótese de se afetar o seu lado comercial. Entre os mais recentes casos; permitir a realização de um Grande Prêmio sobre o risco iminente de um dilúvio (Malásia 2009), autorizar a corrida num pátio em construção (Coreia 2010), contra tudo e contra todos levar seus participantes para correr em plena guerra civil (Bahrain 2012), e manter um Grande Prêmio em pleno cenário de grave crise e conflito internacional (Rússia 2014).
Foi também em 2014, no Japão, que a categoria deu seu mais vexaminoso exemplo. Naquele final de semana de outubro, quando a corrida pelo título chegava em sua reta final, era um consenso entre todas as principais agências de previsão meteorológicas mundiais que o tufão Phanfone se aproximava rapidamente pela costa japonesa, prestes a atingir a região do autódromo de Suzuka justamente no domingo, no exato instante do Grande Prêmio. Mesmo seu núcleo estando no oceano, seu rastro seria gravemente sentido na pista, afirmavam todos.
Porém, atrasar a realização do evento ou mesmo qualquer alternativa que não fosse ignorar solenemente o risco estava fora de cogitação para os administradores da Fórmula 1. Afinal, a audiência não poderia ser comprometida, tal qual o interesse dos anunciantes. E assim, enquanto o principal aeroporto da região se mantinha fechado, a categoria rainha vivia em seu mundo, tratando tudo como atração a mais de seu “espetáculo”.
Foi na 43ª volta das 53 programadas que Jules Bianchi, em pleno dilúvio, perdeu o controle do carro, atingindo violentamente uma grua parada em posição irregular. Veículo e seu corpo passaram imediatamente por debaixo da mesma, provendo um impacto terrível em seu crânio, causando severos danos em seu cérebro. Lembro da cena; a aflição e o medo, traduzidos por completo numa intensa angústia.
Desde então, o piloto entrou em estado vegetativo cujos boletins esporádicos apenas atestavam o pior. Foram nove longos meses em que a luta de Bianchi pela vida ocorria concomitante à da Federação Internacional do Automobilismo pela busca das causas do episódio – como se fosse necessário investigar. E com toda a covardia personificada pelo seu fraquíssimo presidente Jean Todt, a federação botou a culpa justamente em Bianchi, o qual acelerou mais do que o recomendado no trecho de atenção – uma vez que lá já havia um outro carro avariado.
Jules Bianchi sempre foi conhecido no meio por duas coisas; sua natural habilidade, o qual garantiria um lugar ano que vem na Ferrari, consolidando-se como aposta francesa do futuro; mas também, pelo seu jeito simples, afável e carismático de ser, o qual educadamente cumprimentava quem quer que lhe abordasse, respeitando fãs, jornalistas e todos os demais, sempre sorrindo simpático para o público, carinhoso e atencioso, muito além da figura pública que era.
Após nove longos meses, aos 25 anos, Jules Bianchi morreu. Sua luta, tal qual dos seus pais e sua namorada, sempre presentes ao seu lado no hospital, terminou. A angústia chegou ao fim, marcando o início de uma tristeza que para sempre será lembrada. Resta esperarmos que o tempo a dilua, e que Bianchi fique na memória – da vida e da Formula 1 – como alguém que, mais do que um piloto talentoso, se preocupava verdadeiramente com todos a sua volta. Se preocupava com algo além da aparência da competição.
Em 2011, também num outubro, o jornalista André Forastieri escreveu uma polêmica coluna cujo o título era “O sentido do automobilismo é a morte”. Altamente criticado por, de certa forma, banalizar a segurança e visivelmente querer polemizar em torno da morte de Dan Wheldon na Formula Indy, é inegável que o artigo em si trazia umas reflexões interessantes. Como bem diz Nelson Piquet, até a senhorinha de noventa anos que ver Fórmula 1 esperando o circo pegar fogo. O acidente é sim um chamariz. O automobilismo é o que é pela a apreensão, o inevitável a cada curva, o duelo da vida. Novamente, o fator humano, este que o diferencia de uma corrida online em seu Playstation.
Pois não foi o automobilismo que matou Jules Bianchi.
Ricardo Reys
Rio de Janeiro – RJ
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